"DEUS NOS DEU ASAS. As religiões inventaram as gaiolas. Nossas asas são a imaginação. Pela imaginação voamos longe, muito longe, pela terra do nunca mais, pela terra do impossível, pela terra do impensado. Não entenderam? Leiam Cem anos de solidão do Gabriel Garcia Márquez que vocês entenderão. Eu até que entendo a razão porque se fazem gaiolas e cercas. Vejam o caso das galinhas. Se não vivessem em cercados, como colher os seus ovos? Se os pássaros não estivessem nas gaiolas, como possuir o seu canto? Cercas e gaiolas são construidas para se possuir aquilo que, de outra forma voaria livre, para longe... Faz tempo escrevi uma estória para a minha filha, A menina e o pássaro encantado. É sobre uma menina que tinha como seu melhor amigo um pássaro. Mas o pássaro voava livre. Vinha quando tinha saudades da menina. E depois ia embora e deixava a menina a chorar.. Aí a menina comprou uma gaiola... Essa estória eu a escrevi porque iria ficar muito tempo longe, nos Estados Unidos, e ela, minha filha de 4 anos, não queria que eu fosse. Fui e voltei. Depois de publicada fui informado de que a estória estava sendo usada por terapeutas como material para tratamento homens que queriam engaiolar as mulheres e mulheres que queriam engaiolar os homens. Aí um amigo me disse. “Que linda estória você escreveu sobre Deus...” Fiquei sem entender. Ele perguntou então: “ Mas o Pássaro Encantado não é Deus que as religiões tentam prender numa gaiola?” Cada religião anuncia que o Pássaro Sagrado está na sua gaiola, só na sua gaiola. Os outras pássaros, nas gaiolas das outras religiões, não são o verdadeira Pássaro Encantado..."
"RELIGIÃO É PODER: Alguns amigos me perguntaram: “Por que é que você perde tempo com esses absurdos de certos hábitos religiosos?” Respondo: Primeiro, porque tenho profundos sentimentos religiosos e creio que uma das marcas da religião deve ser a libertação da inteligência. Não posso respeitar qualquer religião que, para se impor, amordace o pensamento. Sou um educador e sinto que todos os mecanismos de educação somados não se comparam, em eficácia, aos hábitos mentais criados pelas religiões. As religiões moldam mais o pensamento e o comportamento que a educação. É frequente se ouvir, de pessoas religiosas, que o uso da razão faz mal à fé. Fala-se o nome “Deus” e as pessoas param de pensar e começam a repetir. A repetição de estereótipos é o que mais caracteriza a fala religiosa. Isso não tem nada a ver com Deus. Tem a ver com um pássaro engaiolado que não é o Pássaro Encantado, pássaro que aprendeu a falar e só fala o que os donos da gaiola lhe ensinaram. Louro. Segundo, pelo poder que têm os hábitos religiosos para engaiolar o Pássaro. Na experiência clínica uma grande parcela do sofrimento das pessoas têm a ver com as idéias religiosas que penetraram em sua carne. Terceiro, porque as ilusões religiosas são fonte de intolerância. Muitas pessoas religiosas acreditam ter acesso direto aos pensamentos de Deus. Chegam mesmo a anunciá-lo em adesivos que colam em carros: “Conversei com Jesus esta manhã...” O presidente Bush, para justificar a guerra do Iraque, declarou na televisão que conversava diariamente com Jesus. Parece que Jesus lhe deu maus conselhos... Essa pretensão de ter acesso direto as pensamentos de Deus é fonte de intolerância e fanatismo. Pessoas que acreditam ter acesso direto a Deus aos pensamentos de Deus passam a acreditar que os seus pensamentos são os pensamentos de Deus e tornam-se, inevitavelmente, fanáticas. E desse fanatismo surgiram muitas “guerras santas”. Os homens-bomba, ao realizar sua missão, o fazem num espírito de martírio religioso – são santos que se imolam pela verdade."
Palavra de Grande Inquisidor...
"De tudo o que Dostoievski escreveu em Os Irmãos Karamazovi o que mais me impressionou foi o incidente do “Grande Inquisidor”. É assim. Jesus havia voltado à terra e andava incógnito entre as pessoas. Todos o reconheciam e sentiam o seu poder mas ninguém se atrevia a pronunciar o seu nome. Não era necessário. De longe o Grande Inquisidor o observa no meio da multidão e ordena que ele seja preso e trazido à sua presença. Então, diante do prisioneiro silencioso, ele profere a sua acusação.
“Não há nada mais sedutor aos olhos dos homens do que a liberdade de consciência, mas também não há nada mais terrível. Em lugar de pacificar a consciência humana de uma vez por todas mediante sólidos princípios, Tu lhe ofereceste o que há de mais estranho, de mais enigmático, de mais indeterminado, tudo o que ultrapassava as forças humanas: a liberdade. Agiste, pois, como se não amasses os homens... Em vez de Te apoderares da liberdade humana, Tu a multiplicaste, e assim fazendo, envenenaste com tormentos a vida do homem, para toda a eternidade...”
O Grande Inquisidor estava certo. Ele conhecia o coração dos homens. Os homens dizem amar a liberdade mas, de posse dela, são tomados por um grande medo e fogem para abrigos seguros. A liberdade dá medo. Os homens são pássaros que amam o vôo mas têm medo dos abismos. Por isso abandonam o vôo e se trancam em gaiolas.
Não me recordo o nome do autor. Mas não importa. Textos valem por eles mesmos e não pelos nomes daqueles que os escreveram. Eu o reconto com as minhas palavras.
“Era um bando de patos selvagens que voavam nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tudo tão bonito! Mas era uma beleza que doía. O cansaço do bater das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando e as espingardas dos caçadores... Foi então que um dos patos selvagens, olhando lá das alturas para a terra aqui em baixo viu um bando de patos domésticos. Eram muitos. Estavam tranqüilamente deitados à sombra de uma árvore. Não precisavam voar. Não havia caçadores. Não precisavam buscar o que comer: o seu dono lhes dava milho diariamente. E o pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, baixou seu vôo e passou a viver a vida mansa que pedira a Deus. E assim viveu por muitos anos. Até que... Até que, num ano como os outros chegou de novo o tempo da migração dos patos. Eles passavam nas alturas, no fundo do azul do céu, grasnando, um grupo após o outro. Aquelas visões dos patos em vôo, as memórias de alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado, o lugar chamado saudade. Uma nostalgia pela vida selvagem, pelas belezas que só se vêem nas alturas, pelo fascínio do perigo... Até que não foi mais possível agüentar a saudade. Resolveu voltar a ser o pato selvagem que fora. Abriu suas asas, bateu-as para voar, como outrora... mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, protegido pelas cercas e triste de não poder voar...”
Acho que Fernando Pessoa se sentia um pouco como o pato. Pelo menos é o que sinto ao ler esse poema:
“Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um vôo de ave
E me entristeço!
Porque é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Porque vai sob o céu aberto
Sem um desvio?
Porque ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade
Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh’alma alheia
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do vôo suave
Dentro do meu ser.”
Somos assim. Sonhamos o vôo mas tememos as alturas. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o vôo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o vôo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.
É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que eles voariam se as portas da gaiola estivessem abertas. A verdade é o oposto. Não há carcereiros. Os homens preferem as gaiolas ao vôo.
São eles mesmos que constroem as gaiolas em que se aprisionam “Prisioneiro, dize-me, quem foi que fez essa inquebrável corrente que te prende?”, perguntava Tagore. “Fui eu”, disse o prisioneiro, “fui eu que forjei com cuidado, esta corrente...”
Deus dá a nostalgia pelo vôo. As religiões constroem gaiolas. As religiões são instituições que pretendem haver colocado numa gaiola o Pássaro Encantado. E não percebem que o pássaro que têm preso nas suas gaiolas de palavras é um pássaro empalhado. Era por isso que, no Antigo Testamento, era proibido falar o nome de Deus. Hoje, ao contrário, os religiosos não só falam o nome sagrado como também escrevem tratados de anatomia e fisiologia divinas. E proclamam que o pássaro só pode ser encontrado dentro das suas gaiolas. Religiões: uma enorme feira onde se vendem pássaros engaiolados de todos os tipos.
Os hereges que as religiões queimam e matam não são assassinos, terroristas, ladrões, adúlteros, pedófilos, corruptos. Esses são pecados suaves que podem ser curados pelo perdão e pelos sacramentos. Os hereges, ao contrário, são aqueles que odeiam as gaiolas e abrem as suas portas para que o Pássaro Encantado voe livre. Esse pecado, abrir as portas das gaiolas para que o Pássaro voe livre, não tem perdão. O seu destino é a fogueira. Palavra do Grande Inquisidor.
Correio Popular, 22 de Maio de 2005.
Paz e Luz!
Um comentário:
Me lembrei de um diálogo entre dois amigos, um Pastor e um Pai-de-Santo. O primeiro afirmou: "Deus está na minha Igeja!"... E o Pai-de-Santo retrucou: "Então, deixa ele sair que o mundo está precisando demais Dele!"
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